Israel e a ONU - Cap. 2: O direito de regresso
Como comentei na introdução deste trabalho, o chamado “direito de regresso dos palestinos” foi o assunto que primeiro me fez ter vontade de pesquisar um pouco mais a fundo o conflito judeu-árabe na Palestina. De maneira geral, como acho que já ficou claro em outros textos, tenho simpatia pela causa judaica, no sentido de os judeus terem o direito de defenderem o seu Estado na região. No entanto, o deslocamento de centenas de milhares de árabes quando do estabelecimento do Estado de Israel é um ponto sensível dessa questão. Este ponto é explorado com tons melodramáticos pelos apoiadores da causa palestina. Por essa ótica, esses árabes foram simplesmente expulsos de suas casas localizadas no território atual de Israel, e seria uma questão de justiça que a elas retornassem.
As resoluções da ONU tratam desse assunto de uma maneira bastante confusa. A primeira menção explícita ao problema, e que irá repetir-se resolução após resolução até hoje, é o parágrafo 11 da Resolução 194, de 11/12/1948. Vou colocar aqui a tradução completa:
“11. Resolve que os refugiados que desejam regressar às suas casas e viver em paz com os seus vizinhos devem ser autorizados a fazê-lo o mais cedo possível, e que deve ser paga uma compensação pelos bens daqueles que optarem por não regressar e pela perda de ou danos à propriedade que, segundo os princípios do direito internacional ou por equidade, devam ser reparados pelos governos ou autoridades responsáveis;
Encarrega a Comissão de Conciliação de facilitar o repatriamento, a reinstalação e a reabilitação econômica e social dos refugiados e o pagamento de indenizações, e de manter relações estreitas com o Diretor do Serviço de Assistência das Nações Unidas aos Refugiados da Palestina”.
Antes de analisar esta redação, vamos nos ater a um detalhe importante. Note que não há menção a “palestinos”, mas apenas a “refugiados”. Esse é um detalhe importante. Essa figura do “palestino refugiado”, que foi expulso de seu país, não existia nas primeiras resoluções da ONU. O que havia eram árabes que viviam no antigo Mandato Britânico da Palestina, e que saíram de Israel depois da fundação do país. Os judeus que viviam naquele território também eram conhecidos como “palestinos”, na medida em que viviam na Palestina.
Em visita ao Museu Judaico de São Paulo, tirei uma foto da primeira página de um curioso jornal, Voz de Israel, editado em Belém do Pará, com data de 8/12/1918, logo após o fim da 1ª Guerra Mundial.
Nesta capa, o editor saúda a perspectiva de um Estado Judeu na Palestina. Destaco dois trechos:
“A sorridente bandeira azul e branca com os dois triângulos encruzados, reconhecida e decretada nas recentes reuniões Sionistas Internacionais como pendão nacional da Palestina redimida...”. E ainda: “A independência da Palestina é atualmente um fato e a reconstituída nacionalidade Hebraica, ...”. (grifos meus).
Note como a referência é à Palestina, a terra, e não a Israel, o Estado. O nome “Israel” não é nem sequer mencionado. Era assim que era conhecida aquela terra, tanto para judeus quanto para árabes. Por isso, faço questão de mencionar “árabes da Palestina” e não “palestinos” ao longo deste trabalho.
A primeira menção a “palestinos” nas resoluções da ONU ocorre somente em 10/12/1969, na resolução 2535-B, e mesmo assim acompanhado da palavra “árabes”. O trecho é o seguinte:
“Reconhecendo que o problema dos refugiados árabes palestinos surgiu da negação dos seus direitos inalienáveis nos termos da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
A palavra “palestinos” desacompanhada da palavra “árabes” aparece pela primeira vez apenas um ano depois, em 4/11/1970, na resolução 2628, no seguinte trecho: a Assembleia Geral da ONU
“Reconhece que o respeito pelos direitos dos palestinos é um elemento indispensável para o estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Médio Oriente.”
Por que isso é tão importante? Porque o gentílico “palestinos” remete à ideia de uma nação, a Palestina, na qual nasceriam e viveriam os “palestinos”. Essa ideia, como vemos, é tardia. As próprias resoluções da ONU começam a mencioná-la somente no final da década de 60, mais de 20 anos depois da fundação do Estado de Israel. Antes disso, não havia “palestinos”, mas apenas árabes que viviam na Palestina, o mesmo território onde foi estabelecido o Estado de Israel, e onde viviam os judeus da Palestina. Tratar os “palestinos” como um povo à parte dos árabes é muito conveniente para manter a narrativa de que foram expulsos de seu país. O fato é que não havia um país “Palestina”, apenas uma região chamada Palestina que foi dividida pela ONU entre árabes e judeus.
É interessante como este conceito é abordado durante os debates da resolução acima mencionada, a 2535-B. O representante da Arabia Saudita, por exemplo, afirma o seguinte:
“106. No entanto, gostaria, se me permitem, de chamar a atenção dos nossos colegas, [...], para o fato de que o Mandato na Palestina se basear na preparação do povo autóctone, seja de origem árabe ou de outra origem etnológica, para a independência.
107. O Mandato mencionou o povo palestino; não mencionou o povo israelense. Além disso, até o Mandato foi imposto na nossa área. Era o colonialismo disfarçado. Foi criado a partir de um pacto secreto assinado em 1916, denominado acordo Sykes-Picot. É claro que não preciso entrar na história: cada um de vocês sabe o que aconteceu desde 1919.
108. Deveria ser negado ao povo da Palestina, independentemente de serem árabes, judeus, chineses ou o que quer que seja, o seu direito inalienável como povo? Essa é a questão. Têm um direito inalienável e é essa a essência da resolução B, que acaba de ser adotada.”
O representante da Arábia Saudita está se referindo ao parágrafo 1 da dita resolução, que diz o seguinte:
“1. Reafirma os direitos inalienáveis do povo da Palestina”.
Esta fórmula genérica acabou sendo o principal pomo da discórdia dessa resolução, que obteve apenas 38% de votos “sim”, pelo seu caráter absolutamente ambíguo. O que o representante árabe quer dizer é que se deveria ter um país único, com árabes e judeus vivendo em conjunto, o que significaria um país com maioria árabe, o que lhes daria o controle político do Estado.
Esta “solução” foi tentada às vésperas da votação da resolução 181, que dividiu o Mandato Britânico em dois territórios, um árabe e outro judeu. A delegação do Líbano propôs um plano de 6 pontos, que previa um Estado Federal Independente da Palestina, com cantões árabe e judeu com seus governos provinciais, mas regidos por uma única Constituição, a ser votada por todos os habitantes da região. Obviamente, um plano desse tipo não atendia aos interesses dos judeus, pois os árabes eram a franca maioria no território com um todo (e, por isso, receberam a maior parte do território na partilha da ONU) e, por isso, dominariam o tal Estado Federal. Aos judeus não interessava ser minoria em um país, isso já era o status quo nos países da Europa e nos próprios países árabes. Os judeus queriam um país em que pudessem estabelecer o seu próprio Estado com suas próprias regras, e este é o busílis de toda a questão da Palestina.
No mesmo debate, o representante da Dinamarca coloca a visão que viria a ser a majoritária (mesmo entre os países árabes moderados, como a Arábia Saudita), com exceção dos grupos radicais jihadistas e da esquerda global:
“Mais uma palavra: durante o debate foram ouvidas vozes que levantaram implicações no que diz respeito à existência do Estado de Israel. Na opinião do meu governo, nenhuma questão pode ser legitimamente levantada aqui ou em qualquer outro lugar no que diz respeito ao direito de Israel existir como um estado independente e soberano e um membro pleno e igual das Nações Unidas.”
Voltemos à questão da natureza da Palestina.
A resolução 186, de 14/05/1948 (véspera do fim do mandato britânico na Palestina, data da fundação do Estado de Israel e da declaração de guerra por parte dos países árabes da região), estabelece um mediador para o conflito que teria as seguintes funções:
“(a) Usar seus bons ofícios junto às autoridades locais e comunitárias na Palestina para: (i) Providenciar a operação de serviços comuns necessários à segurança e ao bem-estar da população da Palestina; (ii) Garantir a proteção dos Lugares Santos, edifícios e locais religiosos na Palestina; (iii) Promover um ajustamento pacífico da situação futura da Palestina; (b) Cooperar com a Comissão de Trégua para a Palestina nomeada pelo Conselho de Segurança [...]”.
Note que a referência é sempre à Palestina como região, não como um país definido. Os árabes daquela região precisavam fundar um Estado como os judeus o fizeram. Discutiremos este ponto em detalhe no capítulo 8.
Estaremos sempre, portanto, falando dos árabes que foram expulsos ou decidiram sair do novo território de Israel quando do estabelecimento do seu Estado na região da Palestina. Para entender esse processo, é essencial acompanhar a formação territorial do Estado de Israel. As resoluções da ONU, a partir de determinado momento, farão referência aos “Territórios Palestinos Ocupados”. Se não entendermos como o território de Israel se formou, nos arriscaremos a ficar presos a rótulos como esse. O correto entendimento da questão dos refugiados passa pela questão territorial. Para tanto, vamos usar uma série de mapas da Enciclopédia Britânica e da BBC.
Tudo começou, como sabemos, na resolução 181 da ONU, de 29/11/1947, que propôs o estabelecimento de dois estados na região da Palestina, um árabe e outro judeu. A divisão proposta por esta partilha está no mapa a seguir:
A parte verde é o Estado de Israel fundado em 14/05/1948 pelos judeus, que aceitaram essa partilha. Os árabes que viviam na parte laranja não aceitaram a partilha proposta pela ONU, assim como todos os Estados árabes da região, que imediatamente declararam guerra ao novo Estado e o invadiram no dia seguinte, assim como também ocuparam a parte árabe da partilha da ONU.
A chamada “Guerra da Independência” de Israel terminou em março do ano seguinte, com Israel não só conseguindo defender o seu próprio território, como conquistando partes dos territórios antes destinados a ao Estado árabe na região segundo a partilha proposta pela ONU. Podemos ver a seguir o mapa com a chamada linha de armistício de 1949, ou linha verde, uma linha que será relembrada periodicamente pela ONU em suas resoluções após a Guerra dos Seis Dias. Ou seja, este território conquistado na Guerra da Independência foi reconhecido pela ONU como território de Israel, sobre isso não há disputa.
Note como a Cisjordânia (West Bank) aparece como um território “ocupado pela Jordânia”. Trata-se de um território que deveria ser o Estado árabe estabelecido na Palestina, mas que se tornou, na prática, parte da Jordânia. A notícia abaixo, publicada no dia 07/06/1967, segundo dia da Guerra dos Seis Dias, cita várias cidades da Cisjordânia como sendo jordanianas.
Segundo estimativas da Jewish Virtual Library, em 1947 viviam nos territórios assinalados pela resolução 181, e nos territórios conquistados na Guerra da Independência, 630 mil judeus e 1,3 milhão de árabes. Após a fundação do Estado de Israel e a Guerra da Independência, apenas 12% desses árabes permaneceram no território, um total de 156 mil pessoas. É desses árabes que permaneceram que descendem os 2,6 milhões de árabes que vivem hoje no território de Israel, um crescimento populacional de 3,8% ao ano. Como comparação, o crescimento populacional dos judeus foi de 3,1% ao ano no mesmo período, isso já considerando as levas de imigração durante esses anos. Portanto, cerca de 1,2 milhão de árabes se tornaram refugiados quando da constituição do estado de Israel.
Até o momento, estamos falando de árabes deslocados no processo de criação do Estado de Israel. A resolução 1725, de 20/12/1961, por exemplo, ao mencionar o parágrafo 11 da resolução 194 (direito de regresso), diz textualmente:
“(a) Solicita à Comissão de Conciliação das Nações Unidas para a Palestina que intensifique os seus esforços para a implementação do parágrafo 11 da resolução 194 e insta os governos árabes anfitriões e Israel a cooperarem com a Comissão a este respeito.” (grifo meu).
Ou seja, o problema dos refugiados árabes na Palestina era tanto de Israel quanto dos governos árabes anfitriões, não havia a responsabilidade e a culpa exclusiva de Israel a respeito desse assunto.
A coisa começa a ficar confusa após a Guerra dos Seis Dias, que ocorreu entre 5 e 10/06/1967. É nesta guerra que Israel toma a Faixa de Gaza e a Península do Sinai do Egito, a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) da Jordânia e as colinas do Golã da Síria, conforme o mapa a seguir:
Vou repetir: a Faixa de Gaza e a Cisjordânia (West Bank no mapa acima) pertenciam, respectivamente, ao Egito e à Jordânia. Ou seja, os árabes que aí viviam estavam em território egípcio e jordaniano antes da Guerra dos Seis Dias. Havia árabes refugiados e não refugiados nesses territórios. A resolução 916 (X), de 3/12/1955, faz menção aos não refugiados da Faixa de Gaza:
“Observa a séria necessidade de ajuda dos outros requerentes, [...], nomeadamente, os aldeões fronteiriços na Jordânia, a população não refugiada da Faixa de Gaza, alguns refugiados no Egito e alguns beduínos;”.
Portanto, Israel não invadiu território “palestino”. Israel invadiu território egípcio e jordaniano, onde viviam árabes refugiados desde o processo de criação do Estado de Israel. Esta distinção é fundamental, pois as resoluções da ONU passarão a se referir a estes territórios como “territórios palestinos ocupados” a partir da resolução 33/29, de 7/12/1978, mais de 11 anos após a ocupação. Até então, eram apenas “territórios ocupados”, onde viviam, entre outros, árabes oriundos da antiga Palestina. O uso da expressão “territórios palestinos ocupados” passa a impressão de que “palestinos” dominavam esses territórios e Israel os ocupou. Nada mais longe da realidade: esses territórios, como vimos, pertenciam ao Egito e à Jordânia, e abrigavam muitos dos refugiados árabes deslocados de Israel, mas não só.
Trecho de uma reportagem do Estadão em 10/06/1967, reproduzido a seguir, retrata essa situação na Jordânia, que se via novamente como o destino do êxodo de árabes que viviam na Palestina em virtude da guerra. Note como a matéria se refere aos palestinos como “palestinos árabes”, ou seja, árabes que viviam no antigo território da Palestina, e não como “palestinos”.
O destino dos árabes palestinos que viviam em Gaza e na Cisjordânia foi pela primeira vez abordado em um tratado de paz nos acordos de Camp David, de março de 1979, entre Israel e Egito. Segundo o texto do tratado, os habitantes dos dois territórios deveriam eleger autoridades para governar esses territórios, sob supervisão de Israel, Egito e Jordânia, os três países com fronteiras diretas com Gaza e Cisjordânia. Esse tratado foi violentamente rejeitado por todos os países árabes e pela OLP, que somente concordou com seus termos nos Acordos de Oslo, em 1993, quando se transforma na Autoridade Palestina, com jurisdição sobre Cisjordânia e Gaza. E, por incrível que possa parecer, foi também rejeitado pela ONU, na resolução 34/65, de 12/12/1979. Voltaremos a este ponto em mais detalhe no capítulo 10.
Voltemos à questão do direito de regresso dos árabes palestinos. Como vimos, até 1967, o “direito de regresso” era definido pelo parágrafo 11 da resolução 194, de 11/12/1948. Vou repetir aqui a tradução completa, para analisá-la de maneira mais detida:
“11. Resolve que os refugiados que desejam regressar às suas casas e viver em paz com os seus vizinhos devem ser autorizados a fazê-lo o mais cedo possível, e que deve ser paga uma compensação pelos bens daqueles que optam por não regressar e pela perda de ou danos à propriedade que, segundo os princípios do direito internacional ou por equidade, devam ser reparados pelos governos ou autoridades responsáveis; Encarrega a Comissão de Conciliação de facilitar o repatriamento, a reinstalação e a reabilitação econômica e social dos refugiados e o pagamento de indenizações, e de manter relações estreitas com o Diretor do Serviço de Assistência das Nações Unidas aos Refugiados da Palestina”.
A primeira questão colocada é: voltar para onde? Para suas casas, diz a resolução. Sim, para suas casas. Mas onde se localizam as casas desses refugiados? Lembre-se que estamos falando de uma resolução de dezembro de 1948, logo após a Guerra da Independência de Israel. Portanto, as casas desses refugiados devem estar localizadas no território de Israel, de onde saíram. Voltar para as suas casas em Israel significaria aceitar a soberania do Estado israelense e viver sob suas regras, “em paz com seus vizinhos”, como diz o texto da resolução da ONU. Como vimos anteriormente, cerca de 156 mil árabes decidiram fazê-lo, e muitos mais poderiam tê-lo feito. O problema, claro, seria colocar-se sob a soberania de um país estrangeiro. Do ponto de vista do árabe palestino, sua terra havia sido dividida entre Israel, Egito e Jordânia, que haviam repartido entre si o território árabe do antigo Mandato Britânico na Palestina. Eles se tornaram estrangeiros em sua própria terra.
O fato é que a história anda para frente. Era simplesmente impossível acomodar todos os árabes que foram deslocados de suas terras em Israel, e essa impossibilidade aumentou com o tempo. A terra de Israel tinha como objetivo abrigar os judeus do mundo inteiro que quisessem migrar para o novo país. Para tanto, terras dos árabes, inclusive daqueles que ficaram no país, foram expropriadas pelo governo de Israel nos primeiros anos do novo Estado. Vale lembrar que terras e propriedades de judeus nos países árabes vizinhos sofreram o mesmo destino, mas estes judeus foram acolhidos em Israel, o que não aconteceu com os árabes que viviam no território da Palestina.
Apesar de um “direito de regresso” genérico estar previsto desde 1948, a primeira menção a essas propriedades concretas se dá na resolução 1725, de 20/12/1961, em que a Assembleia Geral da ONU solicita à Comissão de Conciliação das Nações Unidas para a Palestina que
“intensifique o seu trabalho na identificação e avaliação das propriedades imóveis dos refugiados árabes na Palestina em 15/05/1948, e que faça todos os esforços para concluir esse trabalho até setembro de 1962”.
Cabe destacar que Israel votou a favor dessa resolução, ao contrário dos países árabes e da órbita soviética, que se abstiveram. Ou seja, Israel se postou a favor desse levantamento das propriedades árabes em seu país.
Esta lista de propriedades foi concluída em 1964, e a Comissão de Conciliação publicou um relatório em 11/05/1964. Neste extenso e detalhado relatório, uma equipe de especialistas usou basicamente os registros civis e as declarações de imposto de renda para chegar a uma lista de propriedades que teriam pertencido a árabes e que deveriam ser objeto de indenização por parte de Israel. Este relatório foi contestado em uma carta de 16/05/1966, dirigida à Assembleia das Nações Unidas e assinada pela Jordânia, Líbano e Síria. O argumento desses países é que o relatório subestimava em muito a quantidade de propriedades árabes em Israel. Um trecho da carta deixa entrever o ânimo dos árabes em relação a este assunto. Reproduzo a seguir:
“A área total da Palestina, segundo dados oficiais, é de 26.320.230 dunums (26,3 mil km2). A maior parte desta área pertence aos árabes que ali viveram durante milhares de anos como proprietários incontestados. A propriedade judaica no início do Mandato Britânico representava apenas 2% da área total acima mencionada. Como resultado das leis impostas pelo Governo Mandatário sem o consentimento da população originária legítima, a propriedade judaica aumentou no final do Mandato para 1.491.699 dunums (1,5 mil km2), um número que ainda representa menos de 6% da área total de toda a Palestina.”
Note como, na prática, os países árabes não querem saber de qualquer divisão. Segundo eles, praticamente tudo pertencia aos árabes, e mesmo as áreas adquiridas pelos judeus, o teriam sido com base na força. Portanto, não havia como estabelecer diálogo sobre este ponto. Lembremos que esta carta foi escrita um ano antes das hostilidades de 1967, o que demonstra o ponto de vista dos países árabes à época.
As resoluções da ONU passam a ser cada vez mais duras em relação a este ponto. Por exemplo, a resolução 3089 (D), de 7/12/1973, liga o direito de regresso com o direito de autodeterminação dos árabes palestinos:
“...o gozo pelos refugiados árabes-palestinos do seu direito de regressar às suas casas e propriedades, reconhecido pela Assembleia Geral na resolução 194 (III) de 11 de dezembro de 1948, que tem sido repetidamente reafirmado pela Assembleia desde essa data, é indispensável para a obtenção de uma solução justa do problema dos refugiados e para o exercício pelo povo da Palestina do seu direito à autodeterminação”.
Ou seja, para que o povo da Palestina possa se autodeterminar (ou seja, ter um Estado soberano), é preciso regressar às suas terras em Israel. É o mesmo que dizer que os árabes palestinos somente podem ter um Estado onde hoje está Israel, negando implicitamente a solução de dois Estados. Esta resolução teve uma relativamente baixa adesão, com 64% de votos a favor.
O não cumprimento do “direito de regresso” estabelecido pelo parágrafo 11 da resolução 194 é objeto de lamentação em todos os anos a partir de 1954 até hoje. A frase das resoluções é a seguinte:
“Observando que a repatriação ou compensação dos refugiados, conforme previsto no parágrafo 11 da resolução 194, não foi efetuada e que a situação dos refugiados continua a ser motivo de grande preocupação.”
A partir de 1958, a frase acima passa a começar com “Observando com profundo pesar que a repatriação...”, e a partir de 1961, é acrescentado o seguinte parágrafo:
“Observa com pesar que a Comissão de Conciliação das Nações Unidas para a Palestina ainda não foi capaz de relatar o progresso na execução da tarefa que lhe foi confiada no parágrafo 4 da resolução 1456 (XIV) da Assembleia Geral, e solicita novamente à Comissão que faça esforços para assegurar a implementação do parágrafo 11 da resolução 194 (III) e apresentar um relatório sobre o mesmo até 15/10/1961.”
Esse pedido da Assembleia Geral para a Comissão de Conciliação das Nações Unidas para a Palestina se repetirá até hoje.
Para complicar a situação, após 1967, com a invasão e ocupação de Gaza, Cisjordânia e Colinas do Golã por parte de Israel, as resoluções da ONU passam também a mencionar os árabes deslocados por essas invasões. Por exemplo, a resolução 2452, de 19/12/1968, além de lembrar (como sempre) o parágrafo 11 da resolução 194, faz menção aos deslocados pela guerra:
“Convencidos de que a situação das pessoas deslocadas poderia ser aliviada pelo seu rápido regresso às suas casas e aos campos que ocupavam anteriormente; Enfatizando, consequentemente, a exigência do seu rápido retorno. 1. Exorta o Governo de Israel a tomar medidas eficazes e imediatas para o regresso imediato dos habitantes que fugiram das zonas desde o início das hostilidades.”
Considerando que Israel invadiu a Cisjordânia, Gaza, Sinai e Golã, a resolução da ONU refere-se aos habitantes dessas regiões que fugiram para os países árabes limítrofes. Então, temos duas situações diferentes: 1) os árabes palestinos que viviam em Israel e migraram após a fundação do Estado e a Guerra da Independência em 1948 e 2) os árabes que viviam nos territórios então controlados por Egito, Jordânia e Síria (alguns deles, árabes palestinos da época do deslocamento de 1948), e que fugiram para estes países depois do início das hostilidades de 1967. Não são todos, portanto, originários da região do antigo Mandato Britânico da Palestina. Mas as resoluções da ONU não fazem muita questão de distinguir uma coisa da outra.
Logo após o fim das hostilidades de junho de 1967, o secretário-geral da ONU indicou um representante especial, o sueco Nils-Goran Gussing, para verificar in loco as condições do pós-guerra. Ele produziu um longo e detalhado relatório, que pode ser encontrado aqui. É deste relatório que extraí a informação sobre o número de deslocados pela Guerra dos Seis Dias: cerca de 350 mil pessoas saíram ou foram retiradas dos territórios ocupados por Israel em 1967, sendo que destes, cerca de 113 mil (93 mil na Cisjordânia, 17 mil nas colinas de Golã e 3 mil em Gaza) eram refugiados do tempo da Guerra da Independência. Se, como vimos, cerca de 1,2 milhão de árabes saíram de Israel em 1948, os afetados pela Guerra dos Seis Dias não passaram de 10% da população refugiada, que permaneceu, em sua grande maioria, nos seus lugares.
É somente em 1980, na resolução 35/169, de 15/12/1980, que a ONU distingue claramente os dois casos:
“Sem prejuízo do direito de todos os palestinos de regressarem às suas casas, terras e propriedades, o Comitê considera que o programa de implementação do exercício deste direito pode ser realizado em duas fases.
· Fase um: A primeira fase envolve o regresso às suas casas dos palestinos deslocados em consequência da guerra de junho de 1967. O Comitê recomenda que: (a) O Conselho de Segurança deve solicitar a implementação imediata da sua resolução 237 (1967)[1] e que tal implementação não deverá estar relacionada com qualquer outra condição; (b) Os recursos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e/ou da UNRWA, adequadamente financiados e mandatados, podem ser empregados para ajudar na solução de quaisquer problemas logísticos envolvidos no reassentamento daqueles que regressarem às suas casas. Estas agências também poderiam ajudar, em cooperação com os países anfitriões e a OLP, na identificação dos palestinos deslocados.
· Fase dois: A segunda fase trata do regresso às suas casas dos palestinos deslocados entre 1948 e 1967. O Comitê recomenda que: (a) Enquanto a primeira fase estiver sendo implementada, as Nações Unidas, em cooperação com os Estados diretamente envolvidos, e a OLP, na qualidade de representante interino da entidade palestina, deverão proceder à tomada das medidas necessárias para permitir aos palestinos deslocados entre 1948 e 1967 a exercerem o seu direito de regressar às suas casas e propriedades, de acordo com as resoluções relevantes das Nações Unidas, particularmente a resolução 194 (III) da Assembleia Geral; (b) Os palestinos que não optarem por regressar às suas casas devem receber uma compensação justa e equitativa, conforme previsto na resolução 194 (III).”
Mas essa foi uma exceção. A regra é a confusão entre esses dois conceitos. Por exemplo, a resolução 38/83 (E), de 15/12/1983, diz o seguinte:
“Recordando as disposições do parágrafo 11 da sua resolução 194 (III) de 11/12/1948 e considerando que as medidas para reassentar os refugiados palestinos na Faixa de Gaza, longe das casas e propriedades de onde foram deslocados, constituem uma violação do seu direito inalienável de regresso.”
A resolução 38/83 (J) diz a mesma coisa, somente trocando “Faixa de Gaza” por “Cisjordânia”. Note como, nessas resoluções, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia não são considerados palestinos, mas territórios onde Israel pretende reassentar os árabes referidos no parágrafo 11 da resolução 194. Como pode Israel ter ocupado território palestino e, ao mesmo tempo, ser condenado por assentar palestinos nesses mesmos territórios? Não há como escapar dessa armadilha lógica. Pode-se argumentar que as resoluções se referem a deslocamentos forçados dentro desses territórios, mas, neste caso, a referência ao parágrafo 11 da resolução 194 não faria sentido.
A referência ao regresso dos árabes deslocados pelas hostilidades de 1967 receberá uma nova menção quando da assinatura dos Acordos de Oslo, de 1993, que tem o nome oficial de Declaração de Princípios sobre Acordos Provisórios de Autogoverno. Em seu artigo XII, o acordo diz o seguinte:
“As duas partes convidarão os Governos da Jordânia e do Egito a participarem no estabelecimento de novos acordos de ligação e cooperação entre o Governo de Israel e os representantes palestinos, por um lado, e os Governos da Jordânia e do Egito, por outro lado, para promover cooperação entre eles. Estes acordos incluirão a constituição de um Comitê Contínuo que decidirá, por acordo, sobre as modalidades de admissão de pessoas deslocadas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, juntamente com as medidas necessárias para prevenir perturbações e desordem.” (grifo meu).
Note como não há menção aos árabes que saíram de Israel em 1948, este é um assunto que recebe uma menção genérica no início (o texto fala de “refugiados”), e que deve ser objeto de negociação posterior entre Israel e a OLP. Deste ponto em diante, toda a referência ao retorno de árabes palestinos que estavam em Gaza e na Cisjordânia antes da Guerra dos Seis Dias, que foram deslocados dessas regiões pela guerra e desejam retornar, será feita com base nesse artigo do acordo, enquanto o regresso dos árabes palestinos deslocados durante a Guerra da Independência de Israel em 1948 terá como referência o parágrafo 11 da resolução 194, que é genérico e nunca teve realmente um mecanismo pragmático de implementação, a não ser aquela lista de propriedades citada anteriormente, e que não foi aceita pelo mundo árabe.
É incrível como, 75 anos depois da fundação do Estado de Israel, ainda se pede o retorno de árabes palestinos descendentes de mais de 1 milhão de pessoas que saíram de Israel em 1948. Há, sem dúvida, um sentimento muito forte de injustiça: afinal, como afirma a carta citada acima, escrita em conjunto pela Jordânia, Líbano e Síria, os árabes viviam nesta terra antes da chegada dos judeus no século XX. Mas há uma realidade de fato, impossível de ser revertida: Israel é um Estado reconhecido internacionalmente, e que não vai sair de onde está. Além disso, não havia soberania árabe na região da Palestina, o que havia era o Mandato Britânico, este era o regime político quando da divisão daquela terra entre árabes e judeus. Portanto, por mais que houvesse uma maioria árabe, a realidade geopolítica da época impôs essa solução de dois Estados. Ocorre que os judeus tinham para onde ir, Israel; os árabes, não. Daí a triste realidade dos refugiados, árabes que não foram recebidos em lugar algum. Isso se explica porque, para os árabes, a nacionalidade está mais ligada à terra, ao passo que, para os judeus, o que importa é o sangue. Assim, o Estado de Israel estabeleceu o “direito de retorno” para todos os judeus de sangue, independentemente do seu local de nascimento, o que permite que qualquer judeu do mundo obtenha a cidadania israelense e o direito de viver em Israel. Já os árabes do antigo Mandato Britânico da Palestina ficaram sem nacionalidade, na medida em que foram deslocados de sua terra. Trata-se de uma situação triste, que a simples repetição de resoluções da ONU está distante de resolver, por ser impraticável.
[1] Esta resolução, aprovada por unanimidade no Conselho de Segurança, pede ao governo de Israel que facilite o retorno dos habitantes que abandonaram as áreas de conflito da Guerra dos Seis Dias.
Confira os artigos desta série:
1. Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel
2. O direito de regresso dos palestinos
3. Os direitos inalienáveis dos palestinos
4. A propaganda é a alma do negócio
5. A UNRWA
6. Israel, de amante da paz a pária internacional
9. Jerusalém
10. A busca pela paz