Israel e a ONU - Cap.3: Os direitos inalienáveis do povo palestino
A ONU é uma instância neutra somente na aparência. Isso fica claro com a criação do Comitê para o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino (CEIRPP na sigla em inglês), através da resolução 3376, de 10/11/1975. Esta resolução foi aprovada com 93 votos a favor, 18 contra e 27 abstenções, ou seja, com 65% dos votos, o que é um apoio baixo para os padrões das votações da ONU. Votaram contra, entre outros, Alemanha Ocidental, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Islândia, Luxemburgo, Holanda, Noruega e Reino Unido. Abstiveram-se, entre outros, Austrália, Áustria, Chile, Colômbia, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Japão, Nova Zelândia, Portugal, Suécia, Uruguai. O Brasil, claro, votou a favor.
A ideia deste comitê, segundo seu site, é implementar um programa para o exercício dos direitos inalienáveis do povo palestino. E quais são esses direitos? Segundo o programa de implementação do Comitê, são aqueles delineados nos parágrafos 1 e 2 da resolução 3236, de 22/11/1974, quando, pela primeira vez, a ONU define claramente quais são esses direitos inalienáveis. São eles:
1) O direito à autodeterminação sem interferência externa;
2) O direito à independência nacional e soberania;
3) O direito de retornar às suas casas e propriedades de onde foram deslocados e desenraizados.
Com relação aos dois primeiros pontos, não há o que reparar. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Falaremos extensamente sobre isso no capítulo 8.
O terceiro ponto é bem maroto. Note que não há referência de data. Falamos sobre isso no capítulo 2, sobre o direito de regresso dos palestinos. Há dois direitos de regresso: o primeiro se refere à resolução 194, que dispõe sobre o retorno dos árabes que saíram de Israel durante a Guerra da Independência de 1948/49; o segundo se refere aos árabes (refugiados ou não) que estavam nos territórios ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias (Gaza, Cisjordânia e Golã), e que fugiram por causa da guerra. Do jeito que está escrito, serve para os dois casos, o que complica bastante a situação do ponto de vista prático, como vimos no capítulo 2. Afinal, o Estado de Israel é uma realidade reconhecida, e a “volta” dos árabes está longe de ser simples.
De qualquer forma, podemos ter uma ideia do viés desse Comitê ao observarmos a sua primeira formação, de 1976: Afeganistão, Cuba, Chipre, Indonésia, Laos, Alemanha Oriental, Guiné, Hungria, Índia, Iugoslavia, Madagascar, Malásia, Malta, Paquistão, Romênia, Senegal, Serra Leoa, Tunísia, Turquia e Ucrânia. O que poderia sair de um Comitê formado por esses países?
A coisa não melhorou com o tempo. A atual formação do Comitê é a seguinte: Afeganistão, África do Sul, Belarus, Bolívia, Cuba, Chipre, Equador, Guiné, Guiana, Índia, Indonésia, Laos, Madagascar, Malásia, Mali, Malta, Namíbia, Nicarágua, Nigéria, Paquistão, Senegal, Serra Leoa, Tunísia, Turquia e Venezuela. Não é preciso dizer mais nada.
Mas não acaba por aí. Há um corpo de “observadores”, que não fazem parte do Comitê, mas que podem contribuir com os trabalhos. Atualmente, esse grupo é composto por: Arábia Saudita, Argélia, Bangladesh, Bulgária, China, Egito, Emirados Árabes, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Mauritânia, Marrocos, Níger, Qatar, Sri Lanka, Síria, Vietnã, Yemen, além da Autoridade Palestina, da União Africana, da Liga dos Estados Árabes e da Organização de Cooperação Islâmica.
Claro que tanto o Comitê quanto o grupo de observadores estão abertos a qualquer país. Mas que sentido tem em trabalhar em um grupo em que já se sabe de antemão quais serão as conclusões? A participação de qualquer país minimamente neutro em relação à questão serviria somente para emprestar uma chancela neutra para relatórios totalmente viesados. Relatórios estes, é sempre bom lembrar, que são publicados com a chancela da ONU, recebendo um ar de respeitabilidade.
Para termos uma ideia do viés, o chairman do Comitê costuma publicar uma “declaração” sempre que o Comitê entende ser necessário se posicionar a respeito de algum assunto. Pois bem, após o massacre do dia 07/10/2023, a primeira declaração do chairman do Comitê foi publicada no dia 17/10/2023, condenando... a morte e os ferimentos de civis em Gaza! Nenhuma palavra sobre as atrocidades do Hamas!
Voltemos para o início, a instalação desse Comitê. O parágrafo 13 do primeiro relatório do CEIRPP, de 29/5/1976, é uma pérola de rara beleza. Reproduzo a seguir:
“Os membros do Comitê sublinharam o fato de o povo da Palestina, herdeiro de uma civilização antiga, ter iniciado a sua luta pela independência no início do século XX e, já no final da Segunda Guerra Mundial, estar pronto para a independência. No entanto, e apesar da era anticolonialista que surgiu desde a Segunda Guerra Mundial, os palestinos, devido a uma combinação de circunstâncias, sofreram, em vez disso, a dispersão de suas casas e a privação dos seus direitos e propriedades inalienáveis. Durante 30 anos, centenas de milhares de pessoas foram forçadas a viver na miséria, muitas delas no papel de refugiados não uma, mas duas ou mesmo três vezes durante a sua vida. Esta tragédia foi reconhecida pela comunidade internacional como algo que não deveria mais ser tolerado.” (grifo meu)
Não é fofo? Os palestinos estavam prontos para a independência logo após a guerra, mas, “devido a uma combinação de circunstâncias”, não foi possível. Pelo contrário, foram dispersos e viraram refugiados. Não é à toa que não há nenhum país sério apoiando essa geringonça. A pergunta óbvia aqui é: quais foram essas “circunstâncias” que impediram a independência dos árabes palestinos após a 2ª Guerra? É obvio que este assunto não é, digamos, desenvolvido pelo Comitê. Afinal, essas “circunstâncias” envolveram a declaração de guerra dos países árabes a Israel, que não tomaram conhecimento dos “direitos inalienáveis” dos árabes que viviam na Palestina. Tanto não tomaram conhecimento que, depois da Guerra da Independência de Israel, a Cisjordânia foi ocupada pela Jordânia e a faixa de Gaza pelo Egito. Só para lembrar, veja o mapa após a Guerra da Independência:
Esses dois países árabes tiveram a oportunidade, durante 18 anos (de 1949 a 1967) de concederem a independência para os palestinos. Por que não o fizeram?
Coincidentemente (ou não), a pressão pela independência da Palestina somente começa quando Israel ocupa esses territórios, a partir da Guerra dos Seis Dias. Tanto é assim, que a referência aos “direitos inalienáveis dos palestinos” somente merece sua primeira menção em resoluções da ONU em 19/12/1968, na resolução 2443, que faz menção aos
“direitos inalienáveis de todos os habitantes que deixaram as suas casas como resultado da eclosão das hostilidades no Médio Oriente de regressar à casa, retomar a sua vida normal, recuperar os seus bens e casas, e reunir as suas famílias de acordo com as disposições da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
Note que esses “direitos inalienáveis” não se referem à soberania de um suposto Estado da Palestina, mas tão somente ao retorno dos árabes deslocados em razão das hostilidades de 1967. Note também que não há menção aos árabes deslocados em 1948.
A primeira menção aos “direitos inalienáveis” dos palestinos de maneira mais genérica ocorrerá no ano seguinte, em 10/12/1969, na resolução 2535:
“Reconhecendo que o problema dos refugiados árabes palestinos surgiu da negação dos seus direitos inalienáveis nos termos da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
Note que não há uma definição do quais seriam esses “direitos inalienáveis”, mas apenas a ligação entre a realidade dos refugiados e a negação desses tais “direitos inalienáveis”.
No ano seguinte, na resolução 2672(C), de 8/12/1970, os “direitos inalienáveis” dos palestinos são colocados como condição para a paz na região:
“Declara que o pleno respeito pelos direitos inalienáveis do povo da Palestina é um elemento indispensável no estabelecimento de uma paz justa e duradoura no Médio Oriente”.
Mas é somente em 6/12/1971, na resolução 2792(C), que os “direitos inalienáveis” vêm, pela primeira vez, associados à “autodeterminação”:
“Manifesta a sua profunda preocupação pelo fato de o povo da Palestina não ter sido autorizado a usufruir dos seus direitos inalienáveis e a exercer o seu direito à autodeterminação”.
Aliás, é somente a segunda vez que essa “autodeterminação” dos palestinos aparece em resoluções da ONU, sendo a primeira no ano anterior, em 1970. É de se perguntar por que esse foco das resoluções da ONU nos “direitos inalienáveis” e na “autodeterminação” ocorre somente no final da década de 60, 20 anos depois da dispersão dos árabes da Palestina no final da década de 40. A ocupação dos territórios árabes por Israel na Guerra dos Seis Dias foi uma boa desculpa, mas tem algo a mais.
Vamos lembrar que esta época marca a luta pela independência da maior parte dos países da África subsaariana. Nada menos do que 40 países conquistaram a sua independência das potências colonizadoras europeias entre 1960 e 1977. A resolução 2649, de 30/11/1970, aborda
“o direito dos povos à autodeterminação e à rápida concessão da independência aos países e povos colonizados”.
Em seu parágrafo 5, essa resolução diz o seguinte:
“Condena os governos que negam o direito à autodeterminação dos povos reconhecidos como tendo direito a ela, especialmente dos povos do sul da África e da Palestina.” (grifo meu).
Portanto, temos a questão da Palestina no mesmo balaio da luta dos países africanos pela libertação das potências colonizadoras, o que deixa Israel, obviamente, no campo oposto, fazendo o papel de potência colonizadora.
Esse paralelo é, obviamente, sem sentido. Em primeiro lugar, porque Gaza e Cisjordânia pertenciam ao Egito e à Jordânia, respectivamente, antes da Guerra dos Seis Dias, e não consta que os dois países fossem considerados potências colonizadoras. Se esses dois territórios não estavam sob dominação estrangeira antes, significa que faziam parte desses países, o que faz de Israel um invasor, mas não um colonizador. Ou, de outra forma, a invasão desses territórios não os torna colônias se não eram colônias antes do Egito e da Jordânia. Aparentemente, a invasão de Israel teve o condão de criar um povo palestino colonizado onde antes havia árabes jordanianos e egípcios.
Essa narrativa não para em pé. A Aljazeera, em reportagem sobre a Guerra dos Seis Dias, conta assim a história:
“Há mais de 50 anos, o Estado de Israel chocou o mundo quando tomou os restantes territórios palestinos da Cisjordânia, Jerusalém Oriental, Faixa de Gaza, bem como as Colinas de Golã Sírias e a Península Egípcia do Sinai, numa questão de seis dias.
Numa guerra contra o Egito, a Jordânia e a Síria, conhecida como Guerra de 1967, ou Guerra de Junho, Israel causou o que veio a ser conhecido como “Naksa”, que significa revés ou derrota, aos exércitos dos países árabes vizinhos, e aos palestinos que perderam tudo o que restava da sua terra natal.
A Naksa foi uma continuação de um evento central anterior que abriu o caminho para a guerra de 1967. Dezenove anos antes, em 1948, o Estado de Israel surgiu num processo violento que implicou a limpeza étnica da Palestina.
As forças sionistas, na sua missão de criar um “Estado Judeu”, expulsaram cerca de 750.000 palestinos da sua terra natal e destruíram as suas aldeias no processo. Pouco depois de Israel ter declarado a criação de um Estado, unidades dos exércitos dos países árabes vizinhos entraram para lutar pela nação palestina.
A guerra de 1948 terminou com as forças israelenses controlando aproximadamente 78% da Palestina histórica. Os restantes 22% ficaram sob a administração do Egito e da Jordânia.
Em 1967, Israel absorveu toda a Palestina histórica, bem como território adicional do Egito e da Síria. No final da guerra, Israel expulsou outros 300 mil palestinos das suas casas, incluindo 130 mil que foram deslocados em 1948, e ganhou um território três vezes e meia maior que o seu tamanho.” (grifos meus)
Segundo os árabes do Aljazeera, portanto, os países árabes invadiram Israel para “lutar pela nação palestina”, ou seja, Israel não deveria existir. Esse é o cerne de toda a chamada “questão palestina”, a não aceitação da existência de Israel por parte dos árabes. Note que, curiosamente, depois dessa guerra, o território restante (22% do território original destinado aos árabes) ficou sob administração do Egito e da Jordânia. Trata-se justamente dos territórios de Gaza e Cisjordânia. Ora, porque não foi fundado um Estado Palestino nos 18 anos que decorreram entre o fim da guerra da independência e a guerra dos seis dias? Por que os estados árabes “entraram para defender a nação palestina” e, depois da guerra, não passou a existir uma “nação palestina”, mas apenas territórios controlados pelo Egito e Jordânia? Seriam Egito e Jordânia potências colonizadoras? Se não, o que impediu de os palestinos se organizarem em um Estado durante esses 18 anos?
Essas questões formam uma espécie de vácuo na narrativa árabe, que convenientemente desaparece com a Guerra dos Seis Dias. Israel, invadindo esses territórios, passa a ser a “potência colonizadora”, que impede a “autodeterminação” do povo palestino, do mesmo modo que as potências colonizadoras europeias impediram durante séculos a autodeterminação dos povos africanos. O que nos leva novamente a perguntar: entre a colonização britânica até 1948 e a colonização israelense a partir de 1967, o que aconteceu? Quem era o colonizador a impedir a autodeterminação palestina? Por que o clamor pelos “direitos inalienáveis do povo palestino” só tem início após 1967?
Aliás, é de se questionar o que teria acontecido se os países árabes tivessem vencido a guerra de 1948. A “nação palestina” teria vindo à luz no antigo território do Mandato Britânico da Palestina? Ou, como Gaza e Cisjordânia, permaneceriam sob “administração” egípcia e jordaniana (e, quem sabe, síria) até hoje? A história não anda para trás, mas esta é certamente uma questão intrigante, a qual fica a cargo da imaginação de cada um dar uma resposta.
Confira os artigos desta série:
1. Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel
2. O direito de regresso dos palestinos
3. Os direitos inalienáveis dos palestinos
4. A propaganda é a alma do negócio
5. A UNRWA
6. Israel, de amante da paz a pária internacional
9. Jerusalém
10. A busca pela paz