Israel e a ONU - Cap.4: A propaganda é a alma do negócio
A “questão da Palestina” é um das mais, senão, o mais “quente” tópico geopolítico global, quando ajustamos pelo seu potencial destrutivo. Claro, a soberania da China sobre Taiwan, ou a invasão da Ucrânia pela Rússia são tópicos muito mais “quentes”, mas por motivos bastante compreensíveis. Afinal, desses conflitos podem derivar consequências inimagináveis, como uma 3ª Guerra Mundial. Mas o conflito na Palestina dificilmente pode ser enquadrado nessa categoria, digamos, existencial. Trata-se de um conflito regional com baixo potencial destrutivo para o resto do mundo. Como comparação, o conflito entre Índia e Paquistão, dois países com armas nucleares, sobre o território da Caxemira, recebe muito menos atenção da mídia mundial. De onde vem todo esse frisson a respeito desse tema?
Nem sempre foi assim. O gráfico a seguir mostra a evolução do número de artigos em língua inglesa que citam a palavra “Palestine” desde o início do século XX até hoje. Com base nesse gráfico, podemos entender a evolução do interesse sobre o tema. A linha azul mostra o número de artigos ano a ano, ao passo que as linhas cor de laranja marcam as médias em períodos determinados, que serão explicados a seguir.
O gráfico começa com um nível relativamente baixo de interesse pelo tema, uma média de 3,3 mil citações/ano entre os anos de 1900 e 1916. A partir de 1917, o interesse começa a mudar de patamar, provavelmente porque é o ano da Declaração Balfour, em que o secretário britânico para Assuntos Estrangeiros, Arthur James Balfour, escreve uma carta endereçada ao Barão de Rothschild, um dos líderes da comunidade judaica do Reino Unido, prometendo-lhe apoio para um Lar Judeu na Palestina. Entre 1917 e 1932, a média de citações vai a 8,2 mil citações/ano.
A partir de 1933 o número de citações dá mais um salto, atingindo o pico histórico de 54,3 mil citações em 1948, ano da fundação do estado de Israel. A média entre 1933 e 1950 é de 36,8 mil citações/ano. Este aumento a partir de 1933 provavelmente se deve à ascensão do Partido Nazista na Alemanha e o começo da perseguição explícita aos judeus europeus, o que tornou ainda mais premente a necessidade de um Estado judeu.
Com a fundação do Estado judeu, o interesse pela Palestina despenca para o nível de 4,2 mil citações/ano entre 1951 e 1973, um nível pouco acima daquele que prevaleceu durante o período pré-Declaração Balfour. A partir de 1974, no entanto, o interesse pelo termo Palestina começa a aumentar consistentemente ao longo dos anos seguintes, conforme a tabela a seguir:
Observe o aumento consistente das citações, não necessariamente ligado a eventos específicos como nos casos anteriores. O que aconteceu a partir de 1974, que como que “despertou” o interesse pelo tema “Palestina”? É o que veremos a seguir.
A Divisão Para os Direitos Palestinos e o Departamento de Informação Pública da ONU
Como vimos no capítulo 3, o termo “direitos inalienáveis dos palestinos” foi introduzido pela resolução 3236, de 22/11/1974. Com isso, se introduz a “questão da Palestina” como tópico fixo de discussão na Assembleia da ONU, ou seja, a Palestina torna-se um tópico obrigatório em todas as assembleias anuais das Nações Unidas. No ano seguinte foi criado o Comitê sobre o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino, para implementar um programa para garantir esses direitos.
Nesse contexto, a resolução 32/40(B), de 2/12/1977, em seu primeiro parágrafo,
“solicita ao Secretário-Geral que estabeleça no Secretariado das Nações Unidas uma Unidade Especial para os Direitos dos Palestinos”. (grifo meu).
As funções dessa Unidade seriam as seguintes:
“(a) Preparar, sob a orientação do Comitê sobre o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino, estudos e publicações relacionadas com:
(i) Os direitos inalienáveis do povo palestino;
(ii) Resoluções relevantes da Assembleia Geral e outros órgãos das Nações Unidas;
(iii) As atividades do Comitê e outros órgãos, a fim de promover a realização desses direitos;
(b) Promover a máxima publicidade de tais estudos e publicações através de todos os meios apropriados;
(c) Organizar, em consulta com o Comitê, a partir de 1978, a comemoração anual do dia 29 de novembro como o Dia Internacional de Solidariedade com o povo Palestino.”
Essa resolução foi aprovada com 64% dos votos, um apoio baixo para os padrões da ONU. Votaram contra, entre outros: Alemanha Ocidental, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Holanda, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia e Reino Unido. Abstiveram-se, entre outros, Argentina, Áustria, Brasil, Colômbia, Finlândia, França, Japão, México, Suécia e Uruguai. Se até o Brasil se absteve, pode-se imaginar a natureza dessa resolução.
Dois anos depois, em 12/12/1979, a resolução 34/65(D) renomeou essa Unidade Especial para Divisão para os Direitos Palestinos, nome que foi mantido até hoje.
Vamos agora entender do que se trata. Em primeiro lugar, observe que esta Unidade é um órgão da ONU, ao contrário de um Comitê, que é formado por um conjunto de Estados-membros interessados em um determinado assunto. A Divisão para os Direitos Palestinos, que se encontra sob o Departamento de Assuntos Políticos e de Construção da Paz, é formada por burocratas da ONU, que se dedicam exclusivamente a um determinado assunto, como é o caso, por exemplo, da UNESCO e da UNCTAD.
Os palestinos são o único povo que tem uma divisão na ONU para chamar de sua. Vários países lutaram durante anos pela sua independência contra potências coloniais, mas nunca chegaram ao ponto de terem uma divisão inteira da ONU dedicada à sua luta. Minorias como os Uigures na China ou os Chechenos na Rússia, coincidentemente também muçulmanos, também não contaram com a mesma sorte.
E o que faz, na prática, a Divisão para os Direitos Palestinos? Em uma palavra, propaganda.
Como vimos, já no ano de seu estabelecimento, a então Unidade Especial para os Direitos dos Palestinos recebeu como missão “promover a máxima publicidade de estudos e publicações relacionados com os direitos inalienáveis do povo palestino” e “organizar o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino (29/11)”.
Em 1982, a resolução 37/86 “registra com apreço” o fato de países terem incorporado a data acima e emitido “selos postais comemorativos” sobre a data. A seguir, alguns exemplos de selos lançados à época.
Na resolução 38/58(B), de 13/12/1983, a Assembleia Geral da ONU solicita apoio à Divisão para que esta
“mantenha contatos mais estreitos com a mídia”, “dissemine amplamente o material informativo da Divisão, especialmente quando a informação sobre a questão da Palestina for inadequado” e “convoque simpósios a fim de aumentar a consciência dos fatos relacionados com a questão Palestina” (grifos meus).
A partir de 1984, entra em campo para ajudar na tarefa o Departamento de Informação Pública da ONU. Na resolução 39/49(C), a Assembleia solicita que este Departamento conduza as seguintes atividades:
· Expandir e atualizar publicações e material audiovisual sobre os fatos e desenvolvimentos relativos à questão da Palestina;
· Publicar boletins informativos e artigos nas suas publicações relevantes sobre as violações israelenses dos direitos humanos dos habitantes árabes dos territórios ocupados;
· Organizar missões de averiguação de fatos na área para jornalistas;
· Organizar encontros regionais e nacionais para jornalistas.
Esta solicitação se repetirá anualmente, com mais ou menos o mesmo escopo, até 2021.
A partir de 1985, a resolução 40/96(C) especifica que o Departamento deve “produzir um novo filme, séries especiais de programas de rádio e transmissão televisiva” sobre a questão palestina. Esta mesma solicitação se repetirá daí em diante.
Em 1987, uma novidade: a resolução 42/66(C) solicita que o Departamento deve continuar com o seu
“programa especial de informação sobre a questão da Palestina, com particular destaque para a opinião pública na Europa e América do Norte”. (grifo meu).
Ou seja, trata-se de ganhar corações e mentes nesses países recalcitrantes, que se recusavam a ver a luz. Como vimos ao longo do tempo, obtiveram sucesso, constatado no apoio irrestrito dos estudantes das universidades americanas à causa palestina. Esta solicitação se repetirá por 11 anos seguidos, até 1997.
A mesma resolução de 1977 que criou a Unidade Especial para os Direitos Palestinos, solicitou ao Departamento de Informação Pública que criasse uma “exposição fotográfica nas áreas públicas da Sede das Nações Unidas com vista a manter os visitantes informados sobre a grave situação e os direitos inalienáveis do povo palestino.” Esse mesmo pedido se repetirá, agora de maneira anual, a partir de 1993.
É interessante como a Assembleia da ONU vê o seu próprio papel nesta questão da propaganda. A resolução 56/35, de 3/12/2001, diz o seguinte:
“o programa especial de informação sobre a questão da Palestina do Departamento é muito útil para aumentar a sensibilização da comunidade internacional relativamente à questão da Palestina e à situação no Oriente Médio em geral, incluindo as conquistas do processo de paz, e que o programa contribui eficazmente para uma atmosfera propícia ao diálogo e favorável ao processo de paz.” (grifos meus).
A ONU passou décadas incensando um lado e demonizando o outro, e espera, sabe-se lá com base em quê, que isso ajude o diálogo e o processo de paz. Como se a confiança de Israel pudesse ser conquistada com base em uma visão de mundo em que um lado é o opressor e o outro, o oprimido, sem nuances e nem uma história por trás.
O fato, como vimos, é que a propaganda funcionou. O tema “Palestina” tomou conta das universidades e da mídia global, passando de um tema lateral para o centro da luta entre o “bem” e o “mal”. Assim como Che Guevara se tornou um ícone da luta por justiça, estampando camisetas e botons, a Palestina também foi alçada, na base de muita propaganda, ao panteão dos temas obrigatórios para os que querem exibir virtude.
Confira os artigos desta série:
1. Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel
2. O direito de regresso dos palestinos
3. Os direitos inalienáveis dos palestinos
4. A propaganda é a alma do negócio
5. A UNRWA
6. Israel, de amante da paz a pária internacional
9. Jerusalém
10. A busca pela paz