Israel e a ONU - Cap.6: De país amante da paz a pária internacional
Acredite se quiser: Israel já foi considerado um país “amante da paz” pela ONU. Foi por ocasião da resolução 273, de 11/05/1949, resolução que teve como objetivo admitir Israel como membro permanente da ONU.
O texto da resolução é o seguinte:
“Observando que, na opinião do Conselho de Segurança, Israel é um Estado amante da paz e é capaz e está disposto a cumprir as obrigações contidas na Carta; observando que o Conselho de Segurança recomendou à Assembleia Geral que admitisse Israel como membro das Nações Unidas; notando ainda a declaração do Estado de Israel de que "aceita sem reservas as obrigações da Carta das Nações Unidas e compromete-se a honrá-las a partir do dia em que se tornar Membro das Nações Unidas"; [...] A assembleia geral,
1. Decide que Israel é um Estado amante da paz que aceita as obrigações contidas na Carta e é capaz e está disposto a cumprir essas obrigações;
2. Decide admitir Israel como membro das Nações Unidas.” (grifos meus)
Lembremos que Israel havia proclamado a sua independência em 14/05/1948, e, no dia seguinte, todos os países árabes declararam guerra ao novo Estado. Esta guerra durou cerca de um ano, tendo terminado com a assinatura de tratados de armistício (não paz) com o Egito, o Líbano, a Jordânia e a Síria entre fevereiro e julho de 1949. Portanto, quando da aprovação da resolução 273, a Guerra da Independência já se encaminhava para o seu fim e Israel já havia conseguido se estabelecer como um Estado independente. Sua admissão como membro pleno das Nações Unidas apenas confirmou este posicionamento.
Esta resolução foi aprovada com 64% de apoio (37 votos a favor de um total de 58), percentual ligeiramente maior do que os 58% que haviam aprovado a resolução 181, a da partilha da Palestina. Ou seja, temos aqui um nível relativamente baixo de aprovação. Os países árabes votaram contra (Afeganistão, Egito, Irã, Iraque, Líbano, Arábia Saudita, Síria e Yemen), além da Etiópia, Índia, Burma (atual Myanmar) e Paquistão. Abstiveram-se Bélgica, Brasil, Dinamarca, El Salvador, Grécia, Suécia, Tailândia, Turquia e Reino Unido.
É interessante observar como evoluíram os votos em um ano e meio, entre as resoluções 181 e 273.
Brasil, Bélgica, Dinamarca e Suécia, que haviam votado favoravelmente pela partilha da Palestina, se abstiveram na votação pela admissão de Israel à ONU. Por outro lado, Argentina, Chile, Colômbia, China e México, que haviam se abstido na votação da partilha, votaram a favor da admissão de Israel. O caso mais curioso foi o de Cuba, que havia votado contra a partilha e, um ano e meio depois, votou a favor da admissão de Israel como membro da ONU. A única diferença entre uma votação e outra está em seu presidente, que mudou em 1948, entre uma votação e outra. No caso do Brasil, não está claro porque o país mudou o seu voto.
Reforçando a imagem de amante da paz, a resolução 393, de 02/12/1950, estabelece uma Comissão de Observação da Paz, composta por 14 membros, dentre os quais está Israel. Esta comissão tinha o objetivo de
“observar e informar sobre a situação em qualquer área onde exista tensão internacional, cuja continuação seja suscetível de pôr em perigo a manutenção da paz internacional e segurança.”
A coisa vai mudar de figura somente após a Guerra dos Seis Dias, entre 5 e 10/06/1967. Apenas quatro dias após o fim da guerra, o Conselho de Segurança da ONU aprova por unanimidade a resolução 237, em que lembra a Convenção de Genebra relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra, e
“insta o Governo de Israel a garantir a segurança, o bem-estar e a proteção dos habitantes das áreas onde ocorreram as operações militares e a facilitar o regresso dos habitantes que fugiram das áreas desde o início das hostilidades.”
Antes de continuarmos, vale a pena determo-nos neste ponto, que é crucial para entender a dinâmica que tomará o mundo árabe, a ONU e a opinião pública de maneira geral daí em diante.
A Guerra dos Seis Dias
A Guerra dos Seis Dias teve a sua motivação remota na Crise do Suez, 11 anos antes. Em outubro de 1956, o então presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, fechou o Canal de Suez (que liga o Mediterrâneo ao Mar Vermelho) e o Estreito de Tiran (que liga o Golfo de Aqba ao Mar Vermelho), para a passagem de navios israelenses, o que dificultava sobremaneira o comércio de Israel com a Ásia. O mapa abaixo dá uma ideia da geografia:
Grã-Bretanha e França, também prejudicados pelo fechamento do Canal de Suez, intervieram na disputa ao lado de Israel em uma guerra contra o Egito, que teve que ceder e reabrir o Canal e o Estreito à navegação. Israel deixou claro, na ocasião, que qualquer tentativa de fechar novamente o Estreito ou o Canal seria considerado uma declaração de guerra. Uma força militar da ONU, a United Nations Emergency Force (UNEF) foi deslocada para a fronteira entre o Egito e Israel, na Península do Sinai.
Em maio de 1967, Nasser movimenta-se novamente: solicita a retirada da UNEF de seu país e acumula tropas na fronteira com Israel. Em 05/06/1967, Israel ataca e destrói a totalidade da força aérea egípcia em solo egípcio, em um ataque preventivo. A guerra desenrola-se rapidamente a partir daí. A superioridade israelense, não tanto em termos de tropas, mas de logística e inteligência militar, é acachapante. O exército da Síria ataca através das Colinas de Golã, mas Israel consegue virar o jogo e ocupa as Colinas. O exército da Jordânia, sob o comando do Egito, ataca Israel pelo leste, chegando aos subúrbios de Tel Aviv, mas é rechaçado rapidamente. Com isso, Israel toma a Cisjordânia e Jerusalém Oriental.
Durante duas décadas, os países árabes venderam, para os árabes da Palestina, a ilusão de que, mais cedo ou mais tarde, conseguiriam expulsar ou subjugar os judeus da região, de modo a que pudessem retornar à sua terra. A Guerra dos Seis Dias demonstrou o quanto estavam errados, o que foi confirmado pela Guerra do Yom Kippur, seis anos depois. Duas linhas ganham força a partir desse momento: no campo da luta armada, os árabes palestinos se convencem de que somente através da guerrilha e do terrorismo conseguiriam o seu intento (dedicaremos o capítulo 7 a este tópico); no campo diplomático e da opinião pública, os árabes, apoiados pelos países da Cortina de Ferro e da África, começam uma campanha duradoura pela demonização de Israel, agora alçado ao papel de “potência colonizadora”, pois ocupou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, ambos territórios, não custa lembrar, antes sob controle da Jordânia e do Egito, respectivamente, e não de um suposto Estado palestino. Vimos, no capítulo 4, como a ONU desempenhou um papel fundamental nessa campanha.
Vamos deixar claro uma coisa: ninguém é santo nessa história. É óbvio que Israel, em uma situação em que precisa se defender para se manter vivo, terá cometido crimes de guerra durante a guerra, e terá se excedido nas medidas para manter a sua própria segurança. Guerra é sempre uma coisa muito feia. Isso é uma coisa. Outra coisa, bem diferente, é pintar Israel como o vilão e os árabes como os mocinhos da história, como se somente Israel fosse o responsável pela triste situação em que se encontram os refugiados árabes. E é exatamente isso o que acontecerá daqui em diante.
Nessa linha, já em 19/12/1968, a resolução 2443, aprovada com somente 48% dos votos, institui o Comitê Especial para Investigar as Práticas Israelenses que Afetam os Direitos Humanos da População dos Territórios Ocupados. Este Comitê foi constituído para investigar, entre outras coisas,
“a destruição de casas da população civil árabe que habita áreas ocupadas por Israel”.
Neste ponto, vale destacar o detalhado relatório do representante especial da ONU, Nils-Göran Gussing, em que o norueguês, de maneira geral, não encontra evidências de que houve destruição intencional de casas da população civil por parte do exército israelense. Esta acusação, assim como várias outras, serão repetidas ao longo do tempo nas resoluções da ONU.
Israel assume cada vez mais o papel de vilão da história, sendo-lhe imputado todo tipo de crime contra a população árabe (depois chamados de “palestinos”) nos territórios ocupados na Guerra dos Seis Dias. Por exemplo, a resolução 2535(B), de 10/12/1969, aprovada por meros 38% dos votos, afirma que a Assembleia
“gravemente preocupada pelo fato de a negação dos seus direitos (dos árabes nos territórios ocupados) ter sido agravada pelos alegados atos de punição coletiva, detenção arbitrária, recolhimento obrigatório, destruição de casas e propriedades, deportação e outros atos repressivos contra os refugiados e outros habitantes dos territórios ocupados.” (grifo meu).
Aliás, esta resolução é alvo de intensos debates a respeito do que seriam os “direitos inalienáveis do povo da Palestina”, expressão ambígua recém introduzida e que será repetida ad nauseam até hoje. Sob essa expressão, se desenha o quadro em que os árabes palestinos se transformam nas vítimas da opressão imperialista exercida pelas potências ocidentais, a mesma opressão que os povos africanos sofreram durante séculos por parte dos países europeus. O curioso é que, de repente, após a ocupação de Gaza e Cisjordânia, Israel é equiparado aos colonizadores europeus, a ponto de Nelson Mandela ter dito que a luta dos palestinos seria a mesma luta dos povos africanos.
O paralelo é, obviamente, falho. Enquanto os colonizadores europeus mantinham subjugados os povos africanos por motivos econômicos, Israel manteve a ocupação de Gaza e Cisjordânia (e das Colinas de Golã) como uma forma de autodefesa. A Guerra dos Seis Dias foi uma luta pela sobrevivência. Se os países árabes perdessem a guerra (como, de fato, perderam), não desapareceriam (como, de fato, não desapareceram). Já Israel, se perdesse a guerra, seria simplesmente varrida do mapa. É nesse contexto que deve ser entendida a ocupação, e não para proveito econômico, como é o caso da colonização europeia. Aliás, não cansarei de repetir, os territórios ocupados estavam sob controle do Egito e da Jordânia. Seriam esses dois países árabes também colonizadores? Os árabes da Palestina que viviam naqueles dois territórios eram colonizados por Egito e Jordânia? Se não, por que Israel seria um colonizador, no sentido europeu do termo?
Racismo, apartheid e sionismo
A resolução 3151(G), de 14/12/1973 irá, pela primeira vez, formalizar o entendimento de que Israel é uma potência colonizadora. E o pior: racista. No preâmbulo e no seu parágrafo 5º, podemos ler o seguinte:
“A Assembleia Geral, [...] enfatizando o conluio entre o colonialismo português, o regime do apartheid e o sionismo, como exemplificado pelo auxílio político, militar e financeiro fornecido uns aos outros por Portugal, África do Sul e Israel, [...]
5. Condena, em particular, a aliança profana entre o colonialismo português, o racismo sul-africano e o imperialismo sionista israelense;” (grifos meus)
O interessante é que se tratava de uma resolução de condenação ao apartheid na África do Sul. O representante de Burundi, no entanto, propôs a adição dessas duas emendas, o que foi objeto de acalorados debates, uma vez que se tratava de uma espécie de “cavalo de troia” para trazer o tema do sionismo entrelaçado com o racismo do apartheid. Essas duas emendas foram aprovadas com 54% dos votos, um apoio baixo. O Brasil não participou destas votações.
O ponto mais baixo dessa narrativa ocorre na resolução 3379, e 10/11/1975, que obteve 51% de aprovação, incluindo o voto favorável brasileiro. Esta resolução encampa três declarações:
1) “A cooperação internacional e a paz exigem a conquista da libertação e da independência nacionais, a eliminação do colonialismo e do neocolonialismo, da ocupação estrangeira, do sionismo, do apartheid e da discriminação racial em todas as suas formas, [...]” (grifo meu).
Esta declaração foi feita durante a Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher, realizada na Cidade do México na segunda quinzena de junho de 1975. (Como se vê, não se perdia nenhuma oportunidade para malhar o Judas).
2) “[...] o regime racista na Palestina ocupada e os regimes racistas no Zimbabué e na África do Sul têm uma origem imperialista comum, formando um todo e tendo a mesma estrutura racista e estando organicamente ligados na sua política que visa a repressão da dignidade e integridade do ser humano.” (grifo meu).
Esta declaração teve lugar na Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo da Organização da Unidade Africana, que aconteceu no final de julho de 1975.
3) “[...] condena veementemente o sionismo como uma ameaça à paz e à segurança mundiais e apela a todos os países para que se oponham a esta ideologia racista e imperialista.” (grifos meus).
Declaração exarada durante a Conferência dos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Países Não Alinhados, realizada em Lima no final de agosto de 1975.
Com base nestas declarações, a Assembleia Geral da ONU
“determina que o sionismo é uma forma de racismo e discriminação racial”. (grifo meu).
A relação entre sionismo e racismo foi o ponto mais baixo, mas não o único. O colonialismo continuou sendo o ponto em comum dos chamados “regimes odiosos”, como ficou claro na resolução 35/35, de 14/11/1980, que em seu preâmbulo diz o seguinte:
“Indignado com as contínuas violações dos direitos humanos dos povos ainda sob dominação colonial e subjugação estrangeira, com a continuação da ocupação ilegal da Namíbia e com as tentativas da África do Sul de desmembrar o seu território, com a perpetuação do regime minoritário racista na África do Sul e com a negação ao povo palestino dos seus direitos nacionais inalienáveis,” (grifo meu).
Note como está tudo junto e misturado, como se fosse uma só realidade. Esta é a sistematização histórica que transformou o direito de defesa de Israel à sua existência em um empreendimento colonialista e racista. Estas mesmas palavras serão repetidas em resoluções posteriores até 1985. Em 1983, chegou-se ao ponto de se realizar uma Conferência Internacional sobre a Aliança entre a África do Sul e Israel, em Viena.
Vale a pena pararmos um pouco aqui e analisarmos a posição de Israel na condenação do apartheid na África do Sul. Afinal, seria de se esperar que houvesse uma espécie de solidariedade entre os dois regimes.
No total, a ONU aprovou no voto 257 resoluções dentro da agenda “apartheid na África do Sul” entre 1952 e 1993. No gráfico abaixo temos o número de resoluções por ano nessa agenda. Podemos observar que o assunto “esquenta” somente no início dos anos 70, apesar de já termos o problema desde pelo menos os anos 50.
E como Israel se comportou nessas votações? É o que podemos observar no gráfico abaixo:
Neste gráfico, 1 é total apoio às resoluções, e -1, voto contra. Em cada ano, é calculada a média dos votos do país naquele ano.
Observe que Israel condena completamente o apartheid até o ano de 1971. Em 1972, pela primeira vez, se absteve em uma votação, o que fez a média cair um pouco. Mas é a partir de 1973 que o apoio de Israel à condenação de África do Sul despenca, ficando entre -0,5 e zero daí em diante.
A primeira coisa que chama a atenção é o fato de Israel ser a favor de resoluções contra o apartheid até o início da década de 70. Ou seja, não havia alinhamento algum com a África do Sul até então. Lembremos que o sionismo, como expressão do nacionalismo judaico, já existia desde o final do século XIX. Se houvesse alguma identificação com o racismo institucional (apartheid) praticado na África do Sul, seria de se esperar que esta identificação se revelasse desde o início. No entanto, não é isso o que acontece.
Para entender o que ocorreu, é preciso lembrar que 1973 foi o ano da guerra do Yom Kippur, em que as nações árabes, pela última vez, tentariam varrer Israel do mapa. Não tendo sucesso pela 3ª vez (as duas primeiras tentativas foram em 1948 e 1967), os árabes concluem que, pela via militar, não alcançariam o seu objetivo. Aparentemente, decidem então carregar as tintas no campo diplomático. Lembremos que é deste ano a resolução 3151(G) (que vimos acima), que relaciona o apartheid com o sionismo. A partir daí, todas as resoluções da ONU sobre o apartheid, de uma forma ou de outra, adotarão a mesma linguagem usada para condenar Israel.
Por exemplo, a resolução 3411(D), de 28/11/1975, aborda a questão dos “bantustans”, regiões que o governo da África do Sul separou para diferentes tribos. Este mesmo assunto tinha sido abordado pela primeira vez na resolução 2775(E), de 29/11/1971, e recebera o voto “sim” de Israel. No entanto, a resolução 3411(D), 4 anos depois, usa a seguinte sentença, ausente na resolução de 1971:
“Reafirmando a legitimidade da luta do povo sul-africano, sob a liderança dos seus movimentos de libertação nacional, por todos os meios possíveis, pela erradicação total do apartheid e pelo exercício do seu direito à autodeterminação.”
Note como as menções a “movimentos de libertação nacional” e à “autodeterminação” são comuns às resoluções que abordam a “luta do povo palestino”. Inclusive, a expressão “por todos os meios possíveis” é uma espécie de senha para justificar, como a própria expressão diz, todos os meios possíveis, o que inclui o terrorismo. Esta mesma expressão será usada para justificar o terrorismo da OLP nas resoluções condenando Israel. Nesta resolução 3411(E), Israel nem sequer votou.
Foram raras as resoluções sobre o apartheid em que Israel votou contra a partir de 1973. A primeira foi a 3151(G), aquela que inaugura a relação entre apartheid e sionismo. A partir daí, Israel irá votar “não” em mais 35 resoluções, de um total de 210. No restante, ou irá se abster, ou, o que é mais comum, sequer comparecerá para votar. Mas o comportamento de Israel não é necessariamente fora do padrão. No gráfico abaixo, podemos observar como se comportaram países, em tese, muito engajados com a questão dos direitos humanos, além dos Estados Unidos, cujo posicionamento, muitas vezes, segue mais critérios geopolíticos do que propriamente o mérito do que está sendo votado.
Note, em primeiro lugar, que estes países têm um apoio à causa da eliminação do apartheid muito mais errático do que Israel antes da década de 70. A partir de 1973, no entanto, Suécia e Austrália passam a ter um apoio superior a Israel, mas que nunca chega a 100%. Isso se explica porque várias resoluções explicitamente citam Israel e o sionismo e, nestes casos, países neutros como Suécia e Austrália votam contra ou se abstém.
O caso dos Estados Unidos é ainda mais interessante, pois os americanos mostram um apoio ainda menor do que o de Israel à causa, principalmente a partir da década de 80. Podemos inferir aqui que a questão da África do Sul pode ter um componente geopolítico ligado à Guerra Fria. Isso fica claro quando colocamos os Estados Unidos e a Rússia em um mesmo gráfico.
A Rússia, que não é exatamente uma campeã dos direitos humanos, apoiou as condenações à África do Sul em praticamente 100% das vezes até 1990. O seu apoio irá cair justamente a partir de 1991, com o fim da União Soviética. E, ironia das ironias, seu apoio se igualará ao de Israel em 1992 e 1993.
Para encerrar este assunto, vale destacar quer de 1976 em diante até 1992, a Assembleia Geral da ONU aprovou resoluções condenando especificamente as relações entre Israel e a África do Sul. Estas resoluções singularizando Israel tiveram apoio bem abaixo da média das resoluções contra o apartheid, conforme podemos observar no gráfico a seguir.
Vamos, a título de exemplo, transcrever a primeira dessas resoluções, a de 1976 e, em seguida, as justificativas dadas por alguns países para não apoiar tal resolução.
“A assembleia geral, recordando as suas reiteradas condenações ao reforço das relações e da colaboração entre o regime racista da África do Sul e de Israel nos domínios político, militar, econômico e outros, [...] Profundamente preocupada com o fato de Israel ter enviado pessoal paramilitar para treinar tropas sul-africanas e com a venda de navios de guerra e outros materiais de guerra por Israel à África do Sul, em violação flagrante das resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança,
1. Condena veementemente a colaboração contínua e crescente de Israel com o regime racista da África do Sul como uma violação flagrante das resoluções das Nações Unidas e como um incentivo ao regime racista da África do Sul para persistir nas suas políticas criminosas;
2. Solicita ao Secretário-Geral que divulgue amplamente o relatório do Comitê Especial contra o Apartheid, em várias línguas, a fim de mobilizar a opinião pública contra a colaboração de Israel com o regime racista da África do Sul.”
A delegação do Canadá justificou seu voto contra esta resolução dizendo que Israel não é o único estado que mantém relações com a África do Sul e, portanto, não deveria ser singularizado em uma resolução. Na mesma linha, a delegação da Austrália lembra que “a África do Sul é um parceiro comercial significativo e muitas nações mantém relação com o país”. A delegação do México até lista os principais parceiros comerciais da África do Sul: França, Alemanha Ocidental, Reino Unido, Estados Unidos, Israel e Japão. Outras delegações se manifestaram na mesma direção, lamentando que um tema que, de outra forma, contaria com a unanimidade da Assembleia, qual seja, a condenação ao racismo, tenha sido instrumentalizada, abordando um assunto não correlato.
Mas é a manifestação da delegação de Israel que desnuda o âmago da questão aqui. A manifestação começa lembrando as palavras do chanceler israelense a respeito do apartheid naquela mesma Assembleia: “O racismo e a discriminação racial, sob qualquer forma, incluindo o apartheid, são abomináveis para o meu país e para o meu povo. Os princípios básicos do Judaísmo são inconciliáveis com qualquer forma de racismo e discriminação racial”.
Depois de negar as acusações de treinamento de tropas e envio de armas, e de lembrar que o seu comércio com a África do Sul representava somente 0,4% de todo o comércio com o país do apartheid, o representante de Israel toca na ferida:
“Os representantes árabes abordaram um assunto que é caro aos nossos colegas africanos e converteram-no numa discussão árida sobre o problema do Oriente Médio, como fazem em todas as ocasiões possíveis. Se houvesse hoje uma discussão neste fórum sobre medidas internacionais para prevenir a propagação de uma doença fatal, as delegações Árabes converteriam essa discussão num debate sobre o problema do Oriente Médio, e a doença continuaria a cobrar o seu preço às populações do mundo”.
E eu acrescento, com o benefício da perspectiva histórica: a condenação explícita a Israel serve ao jogo do “opressor-oprimido”, e nada melhor do que associar os árabes da Palestina à luta contra a opressão do governo sul-africano. Não se trata, como afirmou o representante israelense, de simplesmente “aproveitar qualquer ocasião para trazer o tema do Oriente Médio”. Este tema específico, delicado como é, serviu como uma luva para trazer o debate para outro campo.
Em 1991, a resolução 3379 (a que definiu o sionismo como racismo, promulgada em 1975) foi revogada pela mesma ONU, através da resolução 46/86, de 19/12/1991. Esta talvez tenha sido a resolução mais curta e seca da ONU, sempre tão pródiga em elencar motivações do mais alto nível humano para justificar as suas resoluções. Esta aqui foi simplesmente isso:
“A assembleia geral decide revogar a determinação contida em sua resolução 3.379 de 10/11/1975”.
Não, isso não é um resumo, isso é tudo. Ok, seria pedir demais para que a Assembleia da ONU fizesse um mea culpa.
Não é coincidência que a data desta resolução coincida com o ano do fim da União Soviética. Observando-se a votação de ambas as resoluções, teremos um panorama geopolítico perfeito do mundo entre essas duas datas.
Em primeiro lugar, a lista de países que votaram a favor da resolução 3379 e contra a resolução 46/86: Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Bangladesh, Cuba, Emirados Árabes, Indonésia, Irã, Iraque, Jordânia, Líbano, Líbia, Malásia, Mali, Mauritânia, Paquistão, Qatar, Somália, Sri Lanka, Sudão, Síria, Yemen. Temos então uma lista de países árabes ou de maioria muçulmana. A única exceção é Cuba, que iria descobrir que a União Soviética havia acabado apenas muitos anos depois.
Em segundo lugar, vejamos a lista de países que votaram contra a resolução 3379 e a favor da resolução 46/86: Austrália, Áustria, Bahamas, Barbados, Bélgica, Canadá, Rep. Centro Africana, Costa Rica, Costa do Marfim, Dinamarca, Rep. Dominicana, El Salvador, Estados Unidos, Eswatini, Fiji, Finlândia, França, Alemanha Ocidental, Haiti, Holanda, Honduras, Irlanda, Israel, Itália, Libéria, Luxemburgo, Malawi, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Panamá, Reino Unido, Suécia, Uruguai. Em sua maioria, nações do chamado “mundo ocidental”, acompanhados de países menores que, por um motivo ou por outro, apoiaram essa agenda.
Mas é a terceira lista que nos interessa mais. Trata-se daqueles países que “mudaram de ideia”, ou seja, apoiaram as duas resoluções. Vejamos: Albânia, Belarus, Benin, Brasil, Bulgária, Burundi, Cabo Verde, Camboja, Camarões, Congo, Chipre, Gâmbia, Granada, Guiana, Hungria, Índia, Madagascar, Malta, México, Mongólia, Moçambique, Nigéria, Polônia, Portugal, URSS/Rússia, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Iugoslávia/Sérvia, Ucrânia.
Note que aqui temos 3 categorias de países: 1) países da ex-cortina de ferro, que, com o fim da União Soviética, perderam o principal objeto de seu alinhamento com o mundo árabe; 2) países da África negra, que também não viram mais motivo para se alinharem com os árabes em uma luta que não era a sua e 3) países que batiam no peito para demonstrar sua independência do imperialismo norte-americano durante a década de 70, mas que perderam essa motivação na década de 90, como Brasil, México e Índia.
Uma curiosidade: se houvesse hoje uma votação sobre o sionismo como racismo, como o Brasil votaria?
Israel não é um estado membro amante da paz
A partir da resolução 9/1, de 05/02/1982, Israel será explicitamente considerado um estado não amante da paz. A declaração consta do parágrafo 11 desta resolução:
“A Assembleia Geral [...] 11. Declara que o histórico e as ações de Israel confirmam que não é um Estado Membro amante da paz e que não cumpriu nem as suas obrigações nos termos da Carta nem o seu compromisso nos termos da resolução 273 (III) da Assembleia Geral de 11/05/1949.”
Esta resolução 273 é a que admitiu Israel como membro da ONU.
Esta resolução é quase como equivalente a expulsar Israel da ONU. Como consequência, em seus parágrafos 12d e 13, a Assembleia insta todos os estados membros a
“cortar relações diplomáticas, comerciais e culturais com Israel e a cessarem imediatamente, individual e coletivamente, todas as relações com Israel, a fim de isolá-lo totalmente em todos os domínios”.
Como chegamos a este ponto, e por que neste momento?
Esta resolução foi uma reação à decisão, por parte de Israel, de anexação das Colinas do Golã sírias ao território israelense, em 14/12/1981. Lembrando que esta região foi ocupada por Israel em 1967, na Guerra dos Seis Dias. Esta decisão, segundo o governo israelense, foi tomada porque as tentativas de paz com a Síria fracassaram. Golã é um ponto alto na fronteira com a Síria, de onde o país árabe tinha uma vantagem tática para ataques ao território israelense, e que vinha sendo usado para este propósito até a Guerra dos Seis Dias. O racional de Israel é que, para a sua própria defesa, deveria controlar este território até alcançar um acordo de paz com a Síria, o que não aconteceu até hoje.
Ocorre que uma coisa é controlar um território ocupado, outra coisa bem diferente é anexá-lo como parte do país. Israel concedeu cidadania aos árabes que moravam na região que quisessem recebê-la. Essa concessão foi também criticada em resoluções da ONU. A primeira delas, a 38/79(F), de 15/12/1983, diz o seguinte:
“Condena veementemente Israel pelas suas tentativas e medidas para impor à força a cidadania israelense e as cédulas de identidade israelenses aos cidadãos sírios nas Colinas do Golã sírios ocupados e insta-o a desistir das suas medidas repressivas contra a população das Colinas do Golã sírios.”
Esta mesma fórmula será utilizada até hoje. Esta resolução foi aprovada por virtual unanimidade. O único voto contra foi do próprio Israel, enquanto os Estados Unidos foram o único país que se absteve. Isso dá uma ideia da impopularidade deste tópico junto à comunidade internacional.
As resoluções em que a ONU recomenda isolar Israel se repetirão anualmente até 1989. Coincidentemente, após a queda do muro de Berlim essas resoluções não são mais propostas para votação da Assembleia.
Foram um total de 9 resoluções propondo cortar relações com Israel neste período, com índice de aprovação entre 52% e 57%, bem baixo para os padrões da ONU. Ou seja, ao mesmo tempo que toda a comunidade internacional condenou a anexação das Colinas do Golã, uma parte relevante rechaçou a ideia de isolar Israel por conta disso.
Votaram contra em todos os anos os seguintes países: Alemanha Ocidental, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido e Suécia. Acho que não é preciso dizer mais nada.
O Brasil se absteve em todas essas votações.
Confira os artigos desta série:
1. Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel
2. O direito de regresso dos palestinos
3. Os direitos inalienáveis dos palestinos
4. A propaganda é a alma do negócio
5. A UNRWA
6. Israel, de amante da paz a pária internacional
9. Jerusalém
10. A busca pela paz